Um passeio rápido pelas ruas da capital capixaba pode revelar muita coisa sobre a memória negra de Vitória: a gente consegue visitar vários lugares que, ainda hoje, nos falam de resistência e orgulho.
Os primeiros registros da presença do negro africano no Espírito Santo datam de 1540, quando o trabalho escravo era o que movimentava as plantações de cana de açúcar.
Mas, foi depois de 1621 que a capitania hereditária do Espírito Santo começou a fazer a compra direta de negros escravizados.
De lá para cá muita coisa mudou. Conquistas importantes aconteceram – ainda que tardias – e devem ser celebradas, mas ainda há muito o que dizer – e principalmente, a ouvir.
Quer um exemplo claro disso? Há algum tempo, eu estava caminhando pelo Centro de Vitória e vi um cartaz. Era apenas uma imagem, sem nenhuma palavra, mas ela me disse muita coisa. A imagem era essa:
Eu confesso que depois disso eu comecei a olhar as ruas da minha cidade de uma forma diferente e – falando a verdade – eu aprendi muito com isso.
Então, eu selecionei alguns monumentos, pontos de interesse e prédios históricos que representam a memória negra de Vitória. Sempre que descobrir lugares novos, vou atualizando a lista e, se você tiver alguma dica, fique à vontade para deixar sua sugestão nos comentários.
Neste artigo, eu vou explicar sobre:
Roteiro da Memória Negra de Vitória
Estes são os lugares que considero importantes para saber mais sobre a memória negra de Vitória – e no Espírito Santo de forma mais ampla.
Museu Capixaba do Negro
No Centro de Vitória, pertinho do Parque Moscoso, fica o Museu Capixaba do Negro Verônica da Pas – Mucane.
Ele conta a história da cultura negra no Estado por meio de exibições fotográficas, exposições de obras de arte, apresentações culturais, lançamentos de livros, rodas de estudo, cursos e aulas temáticas.
O Mucane funciona em um casarão antigo com mais de 700 metros quadrados, que foi totalmente restaurado. A estrutura é muito boa: tem auditório, biblioteca, área para eventos e mezaninos e um anexo construído mais recentemente.
É um lugar movimentado o ano todo, com várias atividades super importantes e a maioria é gratuita. Eu já fiz alguns cursos lá e achei muito interessante.
O Mucane fica na Avenida República, 121, Centro Histórico. As visitas podem ser feitas de terça a sexta, das 12h às 19h.
Ladeira do Pelourinho
Pouco falada nos livros de História, a Ladeira do Pelourinho ligava a Cidade Alta, onde hoje está o Centro Histórico, à parte baixa, próxima ao mar.
É importante lembrar que o termo pelourinho se refere a uma coluna de pedra que, geralmente, ficava no centro de uma praça onde escravos fugitivos ou desobedientes eram castigados.
No processo de modernização da cidade a Praça do Pelourinho desapareceu – como acontece em muitas cidades brasileiras – e a ladeira que dava acesso a ela foi transformada na Escadaria Maria Ortiz, em homenagem à heroína capixaba que protegeu a cidade dos holandeses invasores.
Dizem que do alto de seu sobrado, ela avistou os invasores que subiam pela ladeira do pelourinho e começou a lançar, sobre eles, paus, pedras, água fervendo, e incentivou seus vizinhos a fazerem o mesmo.
Coagidos, os holandeses voltaram para os barcos e desistiram de entrar em Vitória.
Igreja Nossa Senhora do Rosário
Essa Igreja foi erguida em apenas dois anos pelos membros da Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e para chegar até ela é preciso vencer uma extensa escadaria que tem vista para a baía de Vitória – só que a igreja fica bem escondida, quase imperceptível.
Muito mais do que um templo religioso, este prédio tem uma importante relação com a luta pelo fim da escravidão em terras capixabas.
Um símbolo disso é a Casa de Leilão, construída ao lado da igreja, onde os membros da Irmandade arrecadavam dinheiro para comprar a liberdade de negros escravizados.
No interior do prédio, tem um pequeno museu com peças da época que reconta um pouco mais da memória negra de Vitória.
A igreja tem ainda ossuários nos seus corredores e um cemitério na lateral. Até hoje, a procissão de São Benedito é seu evento mais importante.
Monumento à Dona Domingas
Esse curioso monumento retrata Dona Domingas, mulher negra que andava pelas ruas de Vitória catando papel. Domingas tinha baixa estatura e as costas curvadas pelo peso que carregava, mas não se desgrudava de seu cajado, que servia com bengala para as pernas enfraquecidas.
A escultura foi feita pelo artista italiano Carlo Crepaz, que morava na mesma região que Domingas, no bairro Santo Antônio. Ele percebeu na vizinha algo peculiar e, então, se dedicou a reproduzi-la.
Inaugurado na década de 1970, Domingas foi imortalizada no monumento que homenageia o trabalhador negro. A escultura fica a poucos metros do Palácio Anchieta, principal prédio do governo do Espírito Santo.
Muitos nem percebem a presença de Domingas em meio à grandiosidade da escadaria, do Palácio e do Porto de Vitória, que fica de frente, mas eu acho isso muito simbólico: quantos invisíveis estão por nossas ruas e a gente não se dá conta?
Píer de Iemanjá
Como símbolo da luta pela liberdade religiosa, este lugar resistiu à intolerância e ao preconceito, mostrando que é possível e preciso respeitar todas as crenças e culturas.
A escultura de Iemanjá tem 3,60 metros e foi encomendada pelo prefeito de Vitória na época, Hermes Laranja, com o objetivo de homenagear os praticantes dos cultos afro-brasileiros no Estado.
A escultura foi feita pelo artista grego Iannis Zavoudakis e levou dois meses para ficar pronta. Mas, na época da sua inauguração, a Igreja Católica foi contrária.
Houve muita polêmica em torno do assunto, a discussão rendeu e até tentaram impedir a inauguração judicialmente. Mas isso não andou e a estátua, que já estava pronta desde o final de 1987, teve que ficar guardadinha até que o prefeito decidisse fazer a inauguração da imagem, no dia de Iemanjá, 02 de fevereiro do ano seguinte.
A festa foi grande e manifestantes das religiões de matriz africana celebraram a conquista e a beleza da imagem, mãe dos orixás.
“É possível fazer uma escultura e perpetuar no tempo. Eu acreditei nisso. Acredito que ela representa a resistência dos afro-brasileiros que não deixaram aquilo cair aos pedaços, como muitos tinham acreditado e estão lutando”, disse o artista em entrevista na época do lançamento.
Durante muitos anos, a imagem de Iemanjá foi depredada e pichada, mas há muito tempo que isso não acontece.
Apesar de não ter nenhum vínculo com as religiões afro, é um lugar de Vitória que me conecta, me emociona e me faz acreditar que a tolerância e a liberdade sempre vencerão.
O píer é um lugar lindo, especialmente nas luzes do pôr do sol. Além dos turistas, há vários frequentadores assíduos, pescadores de conversa boa, riso fácil e cheios de histórias interessantes.
Vila Rubim
A Vila Rubim é um comércio popular de Vitória. Hoje, essa parte é menos valorizada, mas já foi o principal comércio entre Vitória e Vila Velha, quando a ligação das duas cidades era feita exclusivamente pelas Cinco Pontes – Ponte Florentino Avidos, oficialmente.
Peixes, carnes, hortaliças, cestos, peças de couro, panelas e equipamentos para os trabalhadores da área rural: era – e ainda é – fácil encontrar de tudo na Vila Rubim.
E isso incluía os produtos usados nos rituais das religiões de matriz africana: muitas lojas era especializadas em produtos para oferendas aos orixás e objetos de culto, como velas, estátuas, guias e patuás.
Ainda hoje, algumas lojas mantém essa tradição, fazendo da Vila Rubim um lugar super interessante do roteiro de memória negra de Vitória.
Monumento Guerreiro Zulu
Em 2006, uma das principais avenidas da cidade ganhou um monumento à comunidade negra, o Guerreiro Zulu.
Representando uma casaca, instrumento musical típico do Congo, o monumento de Ireneu Ribeiro é um reconhecimento à importante contribuição do povo afrodescendente em favor do desenvolvimento e da cultura capixabas.
O Guerreiro Zulu tem cerca de sete metros e fica na calçada da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, de frente para o principal shopping da cidade, o Shopping Vitória.
Festas de Congo para São Benedito
A Festa de São Benedito faz parte do calendário oficial de Vitória e é um dos grandes momentos do roteiro da memória negra de Vitória.
Ela começou a ser celebrada no iniciou no século 16 em reuniões de negros africanos, cristãos novos e escravizados no pátio da Igreja e Convento de São Francisco, no Morro da Piedade, em torno de Nossa Senhora do Rosário e do Menino Jesus.
É uma festa que mistura aspectos de diversas crenças com manifestações culturais riquíssimas, como o Congo, a realização de missas e procissões em devoção ao santo negro.
Festas nos bairros
Em Santa Martha, a festa acontece em três momentos. Começa com Cortada do Mastro, no dia 8 de dezembro, e segue no dia 24, véspera de Natal, quando acontece a Procissão de São Benedito, com concentração na Igreja Católica de Santa Martha.
No dia 25, é a vez da Puxada e Fincada do Mastro, com concentração na casa do Mestre Ricardo Sales e participação da banda de congo Amores da Lua.
Em Goiabeiras, a programação começa por volta do dia 12 de dezembro, com a Cortada do Mastro. Já os festejos da Puxada do Mastro acontecem no dia 25, com concentração na praça Treze de Maio e cortejo da banda Panela de Barro.
Na Fonte Grande, as comemorações de São Benedito começaram no dia 12 de dezembro.
Os festejos continuam no dia 27, quando acontece a Procissão de São Benedito, com concentração na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Centro Histórico, com caminhada até a Catedral Metropolitana e congada da banda Vira Mundo.
Bares do Nei e da Zilda
Estes dois bares super tradicionais no Centro de Vitória são famosos pelas rodas de samba, som que veio dos antigos batuques trazidos pelos africanos feitos escravos no Brasil.
O Bar da Zilda faz feijoadas com roda de samba aos sábados.
Escolas de Samba
Vitória tem, pelo menos, dez escolas de samba. Crescendo a cada ano em qualidade, número de alegorias e de agremiados, elas fazem bonito no Sambão do Povo, o sambódromo de Vitória.
Os desfiles acontecem uma semana antes do Carnaval oficial, na sexta e sábado, e é sensacional.
A Lieage reúne todas as escolas do grupo especial e você pode acompanhar as publicações para saber quando acontecem os ensaios e os desfiles. Também é possível agendar visitas para conhecer os galpões e as comunidades.
Coletivos da Cultura Negra
Há várias iniciativas super interessantes de resistência e de preservação da memória negra de Vitória.
Entre os mais influentes eu destaco o Instituto das Pretas e o Núcleo Afro Odomodê. Tem também o Instituto Elium, do respeitado professor Cleber Maciel, autor do livro Negros no Espírito Santo.
Outras Cidades
Além da Capital, outras cidades capixabas têm comunidades, monumentos e pontos de memória importantes para população afro-brasileira.
Quilombolas de São Mateus
No Norte, especialmente nas cidades de São Mateus, há várias comunidades quilombolas.
Entre elas, eu destaco Divino Espírito Santo e Sapê do Norte, que tentam preservar as tradições africanas enquanto lutam para não perder seu território.
Uma iguaria produzidas pelos descendentes de quilombolas é o biju de mandioca.
São José do Queimado
Na cidade de Serra, na região Metropolitana, a Igreja de São José do Queimado guarda as marcas da maior e mais importante revolta de negros escravizados do Espírito Santo.
Liderados por Elisiário, Chico Prego e outros escravos, a Insurreição de Queimados exigia a alforria dos negros do vilarejo e, sem espaço para o diálogo, a revolta foi grande e terminou com a igreja incendiada.
Os negros rebelados foram presos, julgados e cinco foram condenados à morte. Chico Prego foi capturado e enforcado no dia 11 de janeiro de 1850. Elisiário escapou e se refugiou nas matas do Mestre Álvaro e nunca foi recapturado. Por isso, é comum se referir a ele como Zumbi de Queimados.
Quilombolas de Santa Leopoldina
A Comunidade Quilombola de Retiro, em Santa Leopoldina, tem cerca de 300 pessoas, todos descendentes do senhor Benvindo Pereira dos Anjos, fundador da comunidade e que busca manter suas raízes.
Em uma visita à comunidade é possível conhecer a cultura quilombola, através da história de luta contada pelos mais velhos, seu modo de vida, suas casas simples, a banda de congo, o artesanato e muito mais.
Veja mais dicas do Espírito Santo
Viu como há muitos lugares importantes para a memória negra de Vitória? Se tiver alguma dúvida, é só deixar nos comentários que eu respondo.
Se preferir, pode falar comigo no Instagram: @penaestrada. Agora, veja outras dicas do Espírito Santo.
Ola, bom dia.
Parabéns, obrigada por nos dá esse presente.
O estado do Espirito Santo é realmente muito bonito.
sabe me informar sobre uma ruína que esta no centro de São Mateus ES.
obrigada.
Oi, Egilce.
Você pode ver aqui: http://www.saomateus.es.gov.br/guia-turistico/igreja-velha
Um abraço.
Que incrível isso, cara!
Não fazia ideia desses lugares e muito menos das histórias deles.
Vou compartilhar seu post.
Abraço!
Maravilha!
Venha conhecer um pouco mais da minha cidade e se encantar com ela. 🙂
Um abraço!